O que Miriam tem para nos dizer

(O relatório pode ser visto aqui)

Neste momento, alerta a AIS, dois terços da humanidade, ou seja, cerca de 5,4 mil milhões de pessoas vivem em países sem liberdade religiosa. Uma dessas pessoas é Miriam, uma jovem paquistanesa.

“Eram 6 horas da manhã quando tudo começou.” A história, dolorosa, é contada por uma jovem, Miriam, um nome que esconde a sua verdadeira identidade. Miriam sobressaltou-se com os gritos de uma multidão que se acotovelava furiosa em frente à sua casa, no Paquistão. Gritavam. “Vamos queimar-vos, saiam de casa!”

Miriam afirma que estavam todos aterrorizados. “O barulho da multidão era cada vez mais alto. Acusavam o meu avô de blasfémia. O meu avô e todos nós dissemos que não sabíamos do que estavam a falar. Recusaram-se a aceitar o que disséssemos e começaram a arrombar as portas e a partir as paredes e as janelas. Incendiaram a fábrica de calçado ao lado, que era propriedade do meu avô. Invadiram o meu quarto. Eu estava noiva e planeava casar em breve. Os meus pais guardavam objectos no meu quarto, como móveis, roupas e outros presentes, que faziam parte do meu dote. A maioria destes objectos foram roubados, outros foram destruídos. Corremos para salvar as nossas vidas. Escondemo-nos na casa de banho durante seis ou sete horas até que a polícia nos mandou sair. Por esta altura, estava tudo destruído. Tudo avariado, sem água canalizada, sem electricidade. Estávamos desesperados por encontrar o meu avô. Encontrámos um homem caído no chão. Estava coberto de sangue. Os seus dentes estavam partidos, assim como o nariz, e todos os ossos do seu corpo pareciam estar esmagados. Disseram-nos que aquele homem ali caído era o meu avô, mas simplesmente não conseguíamos acreditar.”

Mas era mesmo o avô de Miriam. Levado inconsciente para o hospital, acabaria por não resistir aos ferimentos. Poucos dias depois, a avó de Miriam morreria também, de desgosto. Esta história verídica, que ocorreu recentemente no Paquistão, elucida muito sobre a enorme vulnerabilidade em que se encontra a comunidade cristã neste país asiático. É uma minoria exposta a uma sociedade cada vez mais radicalizada, onde a lei da blasfémia é usada e abusada para atingir os mais frágeis. E muitos são cristãos.

O Relatório sobre a Liberdade Religiosa no Mundo, que abrange o período entre Janeiro de 2023 e Dezembro do ano passado, deixa um alerta: a situação agravou-se e neste momento mais de 5,4 mil milhões de pessoas vivem em países sem plena liberdade religiosa.

196 países analisados à lupa

A história de Miriam ocupa o Prefácio do Relatório da Fundação AIS sobre a Liberdade Religiosa no Mundo, lançado oficialmente esta terça-feira, dia 21 de Outubro, em Lisboa e nas principais capitais europeias. Miriam conta o que lhe aconteceu, mas, mais do que isso, lança-nos um desafio: é preciso agir em defesa das vítimas de perseguição religiosa no mundo. “O dia em que perdemos o meu avô está gravado no meu coração. Podemos recuperar os nossos pertences, podemos reconstruir a nossa casa, mas não podemos trazer o meu avô ou a minha avó de volta. Ao honrar a sua memória e procurar justiça pela sua morte, rezamos para que este relatório ajude as pessoas a compreender o terrível preço que muitos pagam pela falta de liberdade religiosa, uma liberdade que, como podemos testemunhar, é a diferença entre a vida e a morte”.

O Relatório sobre a Liberdade Religiosa no Mundo, que abrange o período entre Janeiro de 2023 e Dezembro do ano passado, deixa um alerta: a situação agravou-se e neste momento mais de 5,4 mil milhões de pessoas vivem em países sem plena liberdade religiosa. Ou seja, cerca de dois terços da humanidade. É o que se passa no Paquistão, o país de Miriam. O relatório analisa a situação em 196 países e documenta graves violações em 62 países a esse direito fundamental que está inscrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos como o seu artigo décimo oitavo.

O relatório identifica o autoritarismo como o principal motor da repressão religiosa, mas também alerta que o extremismo islâmico continua a expandir-se, particularmente em África e na Ásia, e que o chamado nacionalismo étnico-religioso tem vindo a impulsionar a repressão religiosa das minorias em algumas partes da Ásia. O próprio crime organizado é também responsável pela violência religiosa, especialmente em países como o Haiti e México.

Se a Europa ou a América do Norte assistiram a um aumento do clima de hostilidade por motivos religiosos, em África, muitas comunidades vivem um ambiente de verdadeiro terror por causa da actuação crescente de grupos extremistas armados, impulsionadores de um jihadismo militante.

Mil ataques a Igrejas em França

E não se pense que a Europa ou a América no Norte estão imunes a esta realidade. Em 2023, a França registou quase mil ataques a igrejas; na Grécia, ocorreram mais de 600 actos de vandalismo; e picos semelhantes foram observados em Espanha, Itália e Estados Unidos, incluindo profanações de locais de culto, agressões físicas a clérigos e interrupções de serviços religiosos.

De acordo com a Fundação AIS, esses actos reflectem um clima crescente de hostilidade ideológica em relação à religião. E não são apenas os cristãos as vítimas desta intolerância crescente. O Relatório também documenta um aumento dramático nos actos antissemitas e antimuçulmanos após os ataques de 7 de Outubro de 2023, em Israel, e a consequente guerra em Gaza. Em França, os incidentes antissemitas aumentaram mil por cento enquanto os crimes de ódio contra muçulmanos aumentaram 29 por cento. Na Alemanha, houve 4.369 incidentes em 2023, em comparação com apenas 61 no ano anterior.

Alastramento do jihadismo militante

Se a Europa ou a América do Norte assistiram a um aumento do clima de hostilidade por motivos religiosos, em África, muitas comunidades vivem um ambiente de verdadeiro terror por causa da actuação crescente de grupos extremistas armados, impulsionadores de um jihadismo militante. É assim, por exemplo, na Nigéria, no Mali, Níger, Burquina Fasso, Somália, República Centro-Africana, mas também na República Democrática do Congo, Somália, Quénia e Moçambique. O que se está a passar neste último, país africano de língua oficial portuguesa, tem merecido particular atenção por parte da Fundação AIS. De facto, Moçambique tem assistido a um aumento da violência terrorista, especialmente na província de Cabo Delgado, onde militantes filiados no autoproclamado Estado Islâmico continuam a atacar comunidades cristãs, a queimar igrejas e a matar civis.

Apesar da presença de forças militares internacionais, os insurgentes expandiram-se para novos distritos, aproveitando o fraco controlo estatal e os vazios de governação. Neste contexto, as comunidades religiosas, em particular a Igreja Católica, têm-se mantido activamente empenhadas na promoção da paz e do diálogo inter-religioso. A Declaração Inter-religiosa de Pemba, assinada em 2022 por líderes cristãos e muçulmanos, reafirmou o seu compromisso partilhado de prevenir a instrumentalização da religião. Em 2024, o Conselho Islâmico de Moçambique assinalou a sua vontade de mediar com elementos jihadistas.

Estes esforços sublinham a resiliência dos actores religiosos face à crescente insegurança. Mas, apesar disso, as notícias que chegam de Moçambique sinalizam que a violência jihadista está a crescer de intensidade e está até a ultrapassar as fronteiras da província de Cabo Delgado, alastrando, por exemplo para Nampula.

Uma das consequências do terrorismo em Moçambique, como em todos os outros países em África, é o aumento também exponencial do número de pessoas em fuga, acelerando dessa forma as situações de pobreza e miséria e as crises humanitárias no mundo. O Relatório da Fundação AIS alerta para o facto de que as guerras e a violência religiosa desencadearam uma crise silenciosa de deslocamento forçado de centenas de milhares de pessoas. Na Nigéria, ataques de grupos armados ligados a pastores fulani, muito radicalizados, deixaram milhares de mortos e comunidades inteiras desalojadas. No Sahel — especialmente no Burquina Fasso, Níger e Mali – aldeias inteiras foram destruídas por milícias islâmicas. No Sudão, a guerra civil varreu do mapa comunidades cristãs centenárias.

A Fundação AIS decidiu este ano, e pela primeira vez na sua história, lançar uma petição global, de apelo aos governos e às organizações internacionais para que garantam que o Artigo 18.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos não seja letra morta.

E agora, que fazer?

Miriam, a jovem paquistanesa que viu a sua vida sobressaltada no ataque em que o seu avô foi praticamente linchado por uma multidão sedenta de violência e sangue, pede-nos acção. Os crimes de ódio motivados pela intolerância religiosa não devem ficar impunes. Por isso, e porque há milhares de Miriams no mundo, a Fundação AIS decidiu este ano, e pela primeira vez na sua história, lançar uma petição global, de apelo aos governos e às organizações internacionais para que garantam que o Artigo 18.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos não seja letra morta, mas sim um garante para que todas as pessoas tenham direito à liberdade de pensamento, consciência e religião.

O desafio fica lançado também aqui nas páginas do Ponto SJ. Agora é connosco. Assinar esta petição é um primeiro passo para que o mundo tome consciência deste gravíssimo problema. Afinal, a liberdade religiosa é o termómetro para todas as outras liberdades. Por isso, é tão importante esta petição. É preciso dizer alto e em bom som que a liberdade religiosa é um direito e não um privilégio.



Paulo Aido