Do Papa Francisco importaria atender à forma como as suas palavras nos puseram a falar uns com os outros, com os próximos e os distantes, dentro da Igreja e fora dela e como os seus gestos nos puseram a agir em comum.
Artigo inicialmente publicado na revista Brotéria 200–1 (2025): 6–10}
A notícia da morte do Papa Francisco, na segunda-feira de Páscoa, chegou-nos quando terminava o prazo para enviarmos para a gráfica a revista de maio/junho. Com pouquíssimo tempo e uma só página disponível, ainda conseguimos acrescentar in memoriam uma fotografia do momento em que Francisco recebeu em mão um exemplar da Brotéria. Aconteceu em 2022, no encontro anual dos diretores de revistas culturais europeias da Companhia de Jesus que, nesse ano, teve lugar em Roma.
Entretanto, depois de inúmeras análises da herança de Francisco e de apostas sobre quem seria o futuro pontífice, foi eleito Leão XIV que indicou a paz como primeiro desejo.
Do Papa Francisco, mais do que o elenco das expressões marcantes e das ações significativas – foram tantas, umas e outras, desde o primeiro momento em que apareceu na varanda da basílica de S. Pedro, até ao último, no final da Eucaristia na manhã de Páscoa –, importaria atender à forma como as suas palavras nos puseram a falar uns com os outros, com os próximos e os distantes, dentro da Igreja e fora dela, e como os seus gestos nos puseram a agir em comum e como nos entusiasmaram e deram coragem para procurar fazer de outro modo o que, supostamente, tinha sido sempre assim, sem medo de sair e de arriscar, de imaginar e de experimentar, traduzindo, ajustando, corrigindo. É essa a grande autoridade, aquela que autoriza a palavra e o gesto, a quem a detém e a outros. É essa a autoridade que reconhecemos em Jesus de Nazaré: a mudos e a surdos dá palavra – não escuta apenas, mas põe os seus interlocutores em condições de poderem dizer e dizer-se; a prostrados e a paralíticos dá andar; não tendo escrito qualquer linha, faz com que outros se pusessem a escrever evangelhos e cartas.
A propósito da performatividade de palavras e de gestos partilhados, colho do filósofo social Vicenzo Rosito a distinção que faz entre palavras de ordeme palavras de uso (nota 1). As palavras de ordem, diz, «referem-se a um exercício diretivo do poder e a uma visão descendente da autoridade». São também aquelas que podem ser sugeridas por documentos programáticos ou por orientações de quem tem um papel de autoridade. Já as palavras de uso são «aquelas que circulam de forma operativa na vida de uma comunidade; são as palavras usadas de forma horizontal que permitem a um grupo não só de se reconhecer numa orientação comum mas também de contribuir para um projeto partilhado de transformação e de mudança». As palavras de uso são palavras-práticas que, mais do que enunciar conteúdos ou formar para a compreensão de significados, realizam-se em ações feitas com outros (sob este ângulo, haveria tanto que dizer sobre a generalidade das preparações na Igreja, por exemplo, para os sacramentos do batismo, do crisma ou do matrimónio, centradas na explicação de conteúdos, como pré-requisitos para o que se vai viver: primeiro, aprende-se o que significam e é assim que se faz a preparação; depois, e só depois, vive-se conscientemente – não podemos deixar de reconhecer que há neste entendimento de preparação uma dose de artificialidade, porque a vida não funciona assim). Acrescenta Rosito que nem sempre as palavras de ordem passam a palavras de uso: podem ficar apenas ditas e reditas, colecionadas como parte da memória coletiva de uma época ou de determinada personalidade histórica, mas sem que se tenham tornado operativas e instituintes de uma prática coletiva de caminho e de aprendizagem. É este o risco em relação ao legado de Francisco, o de ficarmos com palavras de ordem, ditas ou escritas, e de não nos implicarmos suficientemente para que cheguem a ser efetivas palavras de uso. Rosito, porém, identifica no seu pontificado três palavras que passaram a ser de uso comum na vida quotidiana das comunidades cristãs: discernimento, processo e contexto. São promissoras, precisamente, na medida em que continuarem a ser palavras de uso.
Rosito, porém, identifica no seu pontificado três palavras que passaram a ser de uso comum na vida quotidiana das comunidades cristãs: discernimento, processo e contexto. São promissoras, precisamente, na medida em que continuarem a ser palavras de uso.
Discernimento passou a indicar práticas concretas e ordinárias para procurar em comum, encontrar e decidir algo concreto. Já não é só questão de ressignificar uma palavra que faz parte do património lexical da Igreja mas de a qualificar como linguagem performativa, destinada, portanto, à execução partilhada de uma ação: diz respeito «àquilo que os batizados e as batizadas são hoje capazes de fazer quando usam este termo». É, pois, discernindo que «o Povo de Deus fala, age, vive». Não se compreende apesar ou acima do discernimento, mas enquanto discerne.
Processo é outra das palavras que se tornou de uso comum. No artigo que publicou no número de fevereiro passado na Brotéria, “A processualidade como paradigma eclesial (nota2)”, o autor afirmava que «estamos a passar de uma Igreja que, tanto para dentro como para fora, se comunica através de textos e de sinais, para uma Igreja que, sobretudo, inaugura e conduz processos». Por isso, a processualidade pode «ser considerada a qualidade mais representativa da Igreja Católica no tempo do Papa Francisco», sendo a «categoria que passou a qualificar o quadro da vida eclesial» ao longo da última década. Segundo Rosito, o processo torna-se palavra de uso quando «as comunidades começam a dispor os acontecimentos particulares da vida eclesial num caminho gradual», mais amplo do que os âmbitos particulares e mais extenso do que o curto prazo de uma geração. Sobretudo, o processo torna-se linguagem performativa partilhada quando «deixa de remeter para a imagem de uma superestrutura que se aplica à realidade para se tornar sinónimo de “trilho”» que só existe enquanto é explorado, usado, praticado. No momento em que deixasse de ser percorrido, desapareceria rapidamente da paisagem; quando se tornasse património, tornar-se-ia objeto de memória: já não seria trilho que se percorre e que se percorre com outros, ao longo do qual se aprende uns com os outros. No que diz respeito à sinodalidade, é como processo que se realiza enquanto prática partilhada de caminhar juntos e, portanto, de aprender uns com os outros o caminho a seguir por entre realidades que não se compreendem totalmente.
A terceira palavra é contexto: não é sinónimo de local, «de cena separada e independente em relação às ações e ao agir» (ainda é com este pressuposto que, habitualmente, se se refere à “cultura” em ambientes eclesiais, como um quadro que nos é exterior); não é uma realidade externa, fora ou acima da qual se pensa, por exemplo, Deus ou a fé cristã, mas dentro da qual e com a qual são pensados. Também o contexto é um trilho que se vai percorrendo, renunciando a visões universais que pretendem elevar-se acima da realidade como se se pudesse dispensar de a observar a partir de um lugar específico e de uma perspetiva particular, incapazes de reconhecer tanto as multiformes diferenças da vida como a parcialidade da própria perspetiva.
Com dizia, neutralizaríamos as aberturas e a fecundidade do pontificado de Francisco se o cristalizássemos num belo elenco de slogans fáceis de aprender, que repetimos, a propósito e a despropósito, mas de modo inconsequente, ou se reduzíssemos o seu estilo a gestos caricaturais e excêntricos, considerando-o eminentemente pessoal e idiossincrático, por isso, irrepetível – hoje, em teologia, estilo é um termo específico para indicar um “modo distintivo de habitar o mundo”, que há de ser Igreja como corpo coletivo uno e plural; portanto, uma prática visível e reconhecível, um modo de proceder que conjuga inseparavelmente interno e externo, conteúdo e forma, doutrina e formulações. Se é verdade que a personalidade e o carisma de Francisco não são imitáveis, porque foram a sua personalidade e o seu carisma, o alcance do estilo do seu pontificado não se colheria se fosse separado do processo de receção do novo estilo querido e assumido pelo conjunto da Igreja católica com o Vaticano II.
Se é verdade que a personalidade e o carisma de Francisco não são imitáveis, porque foram a sua personalidade e o seu carisma, o alcance do estilo do seu pontificado não se colheria se fosse separado do processo de receção do novo estilo querido e assumido pelo conjunto da Igreja católica com o Vaticano II.
Como bem tem frisado o teólogo Andrea Grillo, por exemplo no artigo “Sínodo e Igreja moderna: léxico do Vaticano II e cânone tridentino” que publicámos no número de janeiro de 2025 (nota 3), a Igreja tem vivido um desfasamento problemático, do qual se poderá não ter suficiente consciência, entre léxico e cânone, palavras e normas, intenções e práticas. Se com o Vaticano II quisemos outra atitude, se nos abrimos a um novo imaginário, se passámos a falar uma nova linguagem, sem condenações, aberta, próxima, personalista, de facto, continuamos a agir segundo a norma tridentina e antimodernista, centralista, clericalista, burocrática. Não basta, por isso, dizer, formular desejos, declarar intenções, enunciar conteúdos – também “discernimento”, “processo”, “contexto” podem não passar de palavras de ordem. É preciso que as palavras cheguem a ser práticas comuns a cristãos e a comunidades – palavras de uso; é preciso que o novo estilo inaugurado pelo Vaticano II, que, com convicção e audácia, o Papa Francisco fez estilo do seu pontificado, chegue a ser “instituição”. Como é que superar a autorreferencialidade, sair e manchar-se, olhar a partir das periferias, ser Igreja pobre para os pobres, ter cheiro a ovelha, inaugurar e acompanhar processos, caminhar juntos e aprender uns com os outros, mudar de paradigma, perscrutar os sinais dos tempos, reconhecer as vidas reais, etc., se atuarão como práticas comuns e continuadas, processuais e contextuais, de conversação e de confronto, de discernimento e de aprendizagem, que levem à conversão dos procedimentos e das estruturas – não apenas dos corações –, em campos como a liturgia, a autoridade, os ministérios, a moral pessoal, a mulher, o direito canónico e outras matérias que dizem respeito à vida da Igreja, à sua missão e às relações com as realidades socioculturais? Fruto de processos inaugurados, mas ainda não esgotados nem concluídos, e como responsabilidade de continuar a estruturá-los e acompanhá-los, a questão continua viva, não tanto como um problema a resolver por alguns, mas mais como “trilho” a percorrer por toda a Igreja, agora no tempo de Leão XIV.
Notas:
1. “Tra Francesco e il Conclave/1: contesti”, publicado a 1 de maio de 2025, em www.settimananews.it. Veja-se também “Tra Francesco e il Conclave/2: narrazioni” e “Tra Francesco e il Conclave/1: pratiche”, no mesmo sítio, 4 e 6 de maio de 2025, respetivamente.
2. 200–2 (2025): 137–146.
3. 200–1 (2025): 29–44.