PERDER TEMPO PARA RECUPERAR O SENTIDO DO TEMPO

Esta semana partilho a voz de quem sabe bem  o que diz.

A PROPÓSITO DO JUBILEU DO ANO 2025

Editorial da Revista Brotéria de Fevereiro de 2025, do padre José Frazão Correia, SJ

Tudo, a toda a hora, em todo o lado, escreveu recentemente Stuart Jeffries[1], mostrando como nos temos vindo a tornar mais consumidores acríticos do que cidadãos conscientes. Homens e mulheres pós-moder- nos, dessacralizados e abertos, fluidos, flexíveis e irónicos, cada vez mais sofisticados e especializados, deixou de nos constringir qualquer sentido sacral originário e último que se reconheça à vida e à história. A noção de que o tempo tenha um sentido esvazia-se. Sem qualquer ato fundador, o tempo não vai para lado algum; sem sentido anterior ou exterior a cada indivíduo e às dinâmicas sociais, simplesmente corre, e nós corremos com ele ou atrás dele, constantemente atrasados, sempre com falta de tempo. Parece, por isso, poder-se ignorar a origem e o papel da memória, dispensar o horizonte e um fim último que organize sensatamente o curso do tempo. Bastará o instante presente como lugar de realização do direito à felicidade individual que facilmente se identifica com produção e consumo, competição e sucesso – num artigo publicado no jornal Público no passado dia 5 de janeiro, intitulado “Elon Musk, a parábola de um ‘génio’”, escrevia Davide Scarso que um «individualismo competitivo» se vai elevando «ao estatuto de virtude

suprema». Até para o gozo dos bens culturais passámos a usar o verbo consumir. Estranhamente, também as artes e as letras se consomem. Produzimos, portanto, e consumimos, investimos e acumulamos para crescer sempre mais. Se há progresso, é todo económico, servido pelo tecnológico. Ao mesmo tempo, lamentamos não ter o suficiente. Nunca basta o que temos. Na saúde, na escola, na justiça, na habitação, na defesa… faltam sempre recursos económicos. Entre nós, esta narrativa contabilística e utilitarista parece gerar, hoje, mais consenso do que a causa da qualidade da democracia, da fraternidade que seja verdadei- ramente universal ou do cuidado da casa que partilhamos.

A experiência temporal é, porém, mais complexa e conviria salva- guardar tal complexidade como forma de cuidado da humanidade que nos é comum e dos seus ritmos mais elementares. Hoje, esta poderia ser mesmo uma parcela muito relevante do contributo que o universo religioso, de modo particular o judaico-cristão, poderia oferecer para o bem comum – pena é que, tantas vezes, a palavra pública dos crentes afunile no registo, ora moralizante, ora espiritualizante, e não cultive suficientemente nem consiga expor de forma significativa a sabedoria prática sobre dinâmicas humanas elementares acumulada ao longo de gerações e o seu alcance político.

Entre o tempo do trabalho e o tempo livre, entre o tempo produtivo e o tempo de descanso, há um outro tempo, com uma sabedoria e uma lógica próprias: o tempo festivo, aquele em que, com outros, de modo festivo, precisamente, se perde tempo para recuperar o sentido do tempo. Fazer memória e projetar, religando à verdade da existência, é a função do tempo festivo. Sem esta ordem terceira do tempo, o carácter binário do trabalho e do tempo livre, a que, desde o início da industrialização das nossas sociedades, a lógica do tempo tem vindo a ser reduzida, facilmente degenera, o primeiro, em necessidade funcional e imposição externa da qual não se pode escapar e, o segundo, em fuga temporária do trabalho opressor e procura de divertimento evasivo.

Não podendo o ser humano decidir o próprio início e não tendo total domínio sobre o seu destino, a festa põe de novo em contacto com a bondade e a gratuidade da origem e da promessa das coisas últimas. Faz-se memória grata do mais essencial e necessário para relançar o futuro na confiança. A existência – o tempo e a natureza, as relações e o amor e os outros bens elementares sem os quais não vivemos bem – é recolocada no registo do dom, aquém e além do mero acaso, da produção, do comércio, da conquista. A verdade passa por aqui. Por- tanto, a razão também. A graça é mais originária do que o mérito, o gratuito precede o conseguido, ter recebido vem antes de poder dar, partilhar é mais originário do que comerciar.

Como explica o teólogo Armido Rizzi, perante a dureza da necessidade que o trabalho pode exprimir e o caráter alienante que o tempo livre tende a exibir, a festa recoloca a vida no horizonte da gratuidade do necessário, da necessidade do gratuito, da beleza do essencial.[2]Consequentemente, da responsabilidade pelo dom recebido e do dever da partilha. Por isso, a festa é mais lugar de compromisso ético do que lugar de êxtase estético.

Neste sentido, ainda nas palavras de Rizzi, «a dimensão estética não salva o mundo. O homem que se reconhece na festa bíblica diz que a beleza será o mundo salvado, mas não será a beleza a salvar o mundo. Será antes a responsabilidade pela justiça e pelo amor que o salvará».[3] Reconhecer e acolher a vida como dom, gera gratidão, reforça laços e responsabiliza pelo que é comum. Com outros, porque a festa é estruturalmente comunitária, recorda-se, louva-se, agradece-se e assume-se responsabilidade por um bem originário e promissor, uma dádiva primeira, incondicional e permanente que tudo traz à vida e que tudo mantém em vida. Suspendendo ciclicamente por momentos o fluir inexorável do tempo e a ação produtiva no espaço, recupera-se da tentação existencial ao esquecimento, à inveja, à ingra- tidão, à demissão.[4] Ao interromper o trabalho e ao dar uma fisionomia própria ao descanso, o tempo festivo celebra a vida gratuita, própria e alheia, recuperando o que lhe é mais elementar e necessário. Assim se assume responsabilidade por ela.
A beleza que a festa celebra é a do mundo salvaguardado – salvo pelo cuidado, assim mesmo.

Este longo preâmbulo vem a propósito do Jubileu que a Igreja Católica celebra ao longo de 2025, porque é com a lógica do tempo sensato e com a forma responsável como se age no tempo que o Jubi- leu tem a ver. Este ano, trata-se do 27º Jubileu Ordinário, que, desde o século XV, acontece de 25 em 25 anos, tendo sido o primeiro procla- mado em 1300.[5] O Papa Francisco convocou-o a 9 de maio de 2024 com a Bula Spes non confundit e quis pô-lo, precisamente, sob o sinal da esperança que não engana. As “portas santas” que se têm aberto desde o início do ano ficam como símbolo performativo de passos coerentes de conversão e de passagens promissoras.

Com a santificação do domingo, o primeiro dia da semana, a tradição cristã retomou a tradição hebraica que identificava o sábado como o centro do tempo semanal (há um dia em que não se trabalha, se abstém de produzir e de comerciar e se consome o que se produziu antes), a páscoa como centro do tempo anual (Deus criador age na história salvando), o jubileu como centro da sucessão das gerações (de 49 em 49 anos – 7x7 –, vive-se um tempo em que a terra, da qual Deus é o único senhor, repousa e os escravos readquirem a liberdade). Invenção medieval, o Jubileu cristão recupera e repropõe para o ciclo de uma geração a lógica semanal do sábado/domingo que é outra em relação à da posse e da produção, da conquista e do mérito, do crédito e do débito. A graça – a abundância, a gratidão, a gratuidade – diz o sentido do tempo e pode dar uma forma justa à vida individual e coletiva. Viver bem o presente com outros, sobre a terra recebida como casa, pede memória do bem recebido, arrependimento do mal praticado – recuperando a lógica do dom, abre-se espaço para o perdão pedido e concedido –, projeção do futuro como promessa.

É muito o que se joga no Jubileu como tempo extraordináriopropício para que a forma ordinária da vida se confronte criticamente com a avidez da posse e a obsessão do crédito e recupere o dom e o perdão como seu princípio e fundamento. Será um propósito ingénuo, sem alcance social e político, atendendo às grandes lógicas que determinam a geopolítica mundial e a nossa vida coletiva? Não seria certamente se, como apela o Papa na sua Bula, levasse a atender convenientemente à causa dos doentes e dos idosos, dos migrantes e dos pobres, das dívidas públicas dos países mais pobres e das penas dos reclusos. Mas, mesmo que tal não acontecesse, voltar a considerar a gratuidade do necessário, a necessidade do gratuito, a beleza do essencial é uma necessidade para permanecermos humanos, responsabilidade à qual, cada um ao seu modo, não deverá renunciar.

Paul Krugman, prémio Nobel da Economia em 2008, despediu-se recentemente da coluna que teve durante 25 anos no The New York Times, escrevendo sobre como encontrar esperança numa era de res- sentimento. Também na economia mundial, na política internacional, no conserto das nações, parece importante manter aberta a porta da esperança. A lógica do dom e do perdão que o tempo festivo retoma e celebra poderá orientar os passos que é preciso dar para a atravessar. O Jubileu oferece um tempo oportuno.


Padre José Frazão correia, SJ

_____________________________________

[1] Lisboa: Zigurate, 2024. 

[2] Cf. Il problema del senso del tempo. Tempo, festa, preghiera
(Assis: Cittadella, 2006), 75-84.

[3] Ib., 81.

[4] Cf. Andrea Grillo, Tempo graziato. La liturgia come festa
(Pádua: Messaggero, 2018), 39.

[5] Cf. Bula de Proclamação do Jubileu Ordinário do Ano 2025, Spes non confundit, de 9 de maio de 2024. Para uma breve resenha histórica dos jubileus, veja-se: https://www.iubilaeum2025.va/pt/giubileo-2025/ giubilei-nella-storia.html