A lâmpada do corpo são os olhos; se os teus olhos estiverem sãos, todo o teu corpo andará iluminado (Mt 6, 22)

Desconcertantes são estas palavras que Jesus pronunciou, quando lidas de maneira literal. Significarão elas que, se os olhos de uma pessoa estiverem doentes ela não recebe a compaixão de Jesus? Significará isso que, por razões de saúde, por dificuldades de visão ou por ser invisual, o Senhor não quer entrar na nossa vida? Será possível que Deus Se contradiga? Não pode ser! Não bate certo!

   Sendo assim, não serão “os olhos” da nossa cara que devem estar sãos, mas sim “o olhar”, ou melhor, “a expressão do olhar” e, mais profundamente ainda, “a maneira como olhamos” que, essa sim, reflecte a expressão da nossa alma e tudo o que vai dentro dela.

   Não é preciso muito esforço para nos lembrarmos de expressões faciais que já vimos e que nos revelaram imediatamente qual o estado de espírito da pessoa que as mostrou. Existem, até, expressões linguísticas que vão ao encontro daquilo que as expressões faciais revelam: “um olhar embevecido”, “um olhar fulminante”, “um olhar inexpressivo”, “um olhar mortífero”, “um olhar acolhedor”.

   Esta introdução leva-nos, de imediato, a mergulhar na Sagrada Escritura para procurarmos conhecer o olhar com que Jesus olhava para as pessoas, a expressão do olhar de Jesus perante as diversas situações, que é exactamente o mesmo olhar com que Jesus olha para nós e a mesma expressão do olhar com que Jesus olha para as situações que vivemos. 

   “Contemplando a multidão, encheu-se de compaixão por ela, pois estava cansada e abatida, como ovelhas sem pastor.” (Mt 9,36). 

   É a mesma compaixão que Jesus sente hoje pelas multidões, cansadas, abatidas, perseguidas, maltratadas por todos aqueles que não querem ouvir o Bom Pastor.

   “Fixando neles o olhar, Jesus disse-lhes: «Aos homens é impossível, mas a Deus tudo é possível.»” (Mt 19,26) 

   Imaginamos Jesus a dizer isto com a mesma autoridade com que afirmou «Há tanto tempo que estou convosco, e não me ficaste a conhecer, Filipe? Quem me vê, vê o Pai.» (Jo 14, 9), bem como o motivo por que devemos ser perseverantes na oração ao Pai, que “dará o Espírito Santo àqueles que lho pedem” (Lc 11, 11b)

   “Voltando-se, o Senhor fixou os olhos em Pedro; e Pedro recordou-se da palavra do Senhor, quando lhe disse: «Hoje, antes de o galo cantar, irás negar-me três vezes.» E, vindo para fora, chorou amargamente.” (Lc 22, 61.62)

   Este é, talvez, o momento mais intenso em que podemos conhecer o olhar de Jesus, a profundidade, a ternura, a compaixão, o amor, o perdão que transparecia do Seu olhar, que transparece do Seu olhar, sempre que alguém O olhava ou procurava com o olhar, que alguém O olha ou procura com o olhar, sempre que o Seu olhar se cruzava, ou se cruza, com o de alguém.

   Esse olhar compassivo, benevolente, misericordioso, de infinito amor que brota de Deus, foi sempre alimentado, sustentado, robustecido pela contínua comunhão que o Filho vivia com o Pai, fundada na oração íntima, na procura de corresponder sempre à Sua vontade, fruto da constante acção do Espírito presente em Si.

   O nosso desejo de encontrar o olhar compassivo, benevolente, misericordioso, do infinito amor de Deus, existe no íntimo de cada um e é possível de realizar, porque o Senhor acolhe sempre a oração do humilde. 

   Imagino muitas vezes o episódio vivido por S. João Maria Vianney quando perguntou ao humilde e iletrado camponês da paróquia de Ars porque é que estava tanto tempo sentado diante do Sacrário, sem orar, sem dizer nada, ao que ele terá respondido com total simplicidade: “Sento-me aqui, eu olho para Ele e Ele olha para mim.”

   Este é o olhar que Jesus espera de nós. É o olhar que devemos procurar ter porque, olhando para a Luz, deixamos que Ele nos ilumine interiormente com o seu Espírito, deixamos que Ele cure o nosso olhar e o torne são, a fim de que todo o nosso corpo ande iluminado.

   Essa procura, associada ao desejo de seguir a vontade do Pai, leva-nos a um contínuo estado de louvor que transforma a nossa vida numa oração continuada, permanente, sem palavras, mas com atitudes que revelam a saúde do nosso corpo, dos nossos olhos, porque fundada no olhar de Jesus que nos ensina a ver com os olhos de Deus e que nós próprios deixamos reflectir no nosso olhar.

Fernando Brites