ANGOLA: Missionário português denuncia “escândalo da fome” no Sumbe, província do Cuanza Sul

A cerca de 400 km a sul de Luanda, fica a cordilheira montanhosa do Gungo. Nessa zona de difícil acesso, vive uma população muito empobrecida que está no centro das preocupações de missionários portugueses da Diocese de Leiria-Fátima, que tem, desde 2006, um protocolo de geminação com a Diocese do Sumbe. O Padre Joaquim Domingos Luís, que acompanha esta missão em Angola, denuncia, à Fundação AIS, “o escândalo da fome” que afecta este “povo esquecido”… Uma denúncia que é reforçada pela nota pastoral da conferência episcopal, divulgada recentemente, e em que os bispos alertam para a “indigência” em que vivem os sectores mais frágeis da sociedade angolana.

“Os acessos são muito difíceis, com as picadas, como nós chamamos, e na altura das chuvas é mesmo uma aventura conseguir chegar à missão na Donga, na montanha.”As palavras são do Padre Joaquim Domingos Luís, responsável pelo Serviço de Animação Missionária da Diocese de Leiria-Fátima, que tem a responsabilidade de acompanhar o que se passa nesta missão na zona de montanha do Gungo, na província do Cuanza Sul, desde que foi assinado um protocolo de geminação com a Diocese angolana do Sumbe.

Uma geminação que foi celebrada em 2006 e que se tem mantido activa desde então, sendo mesmo um bom exemplo do intercâmbio missionário, com a presença, em terras de Angola, de um sacerdote e de um grupo de leigos missionários, o Ondjoyetu, que significa “a nossa casa” na língua Umbundu.

O Padre Joaquim Domingos Luís, da Congregação do Verbo Divino, esteve por lá em 2018 e guarda ainda uma forte memória do local, das pessoas e das dificuldades de quem, nesta zona de Angola, procura levar esperança às populações locais.  “Nós trabalhamos sobretudo nas montanhas do Gungo, o povo vive da agricultura e do pequeno comércio”, explica o sacerdote à Fundação AIS. A dificuldade no acesso a esta região montanhosa ajudará a perceber a situação em que se encontra este “povo esquecido”, como diz o sacerdote português. E a questão da fome está sempre presente.

A segurança alimentar não existe, pois basta haver mais chuva ou falta de chuva para que as colheitas diminuem e os ‘stocks’ de comida baixem e os preços aumentem vertiginosamente. De 2018 para cá – explica – os preços dos bens essenciais triplicaram, como é o caso do milho, do arroz, da mandioca e do amendoim.”

Padre Joaquim Domingos Luís

MUITAS INICIATIVAS DE SOLIDARIEDADE

Ser missionário nesta região significa partilhar os problemas, anseios e dificuldades das populações. É isso que que faz a equipa da diocese de Leiria-Fátima. Estão lá para ajudar, para serem sinal de esperança, mas também para dizerem ao mundo que naquela região de Angola – como infelizmente em muitas outras áreas do país – as pessoas vivem com extrema dificuldade e isso não deve ser ignorado.

O Padre Joaquim Domingos Luís diz mesmo que “para o povo simples, que não tem salário e vive de uma agricultura de subsistência, é mesmo muito difícil” a sobrevivência do dia-a-dia. E destaca, também por isso, a importância de diversas iniciativas de solidariedade, que incluem a Igreja e que se têm vindo a alargar à sociedade civil.

“A mortalidade infantil é elevada, apesar nos últimos anos ter diminuído graças a um projecto de saúde materno-infantil levado a cabo por uma ONG portuguesa que se chama ‘Saúde em Português’, orientado pela doutora Inês Figueiredo e com a colaboração do grupo missionário Ondjoyetu. Há também alguns factores culturais que impedem uma maior produtividade”, explica o padre de Leiria-Fátima.

AS MULHERES SÃO MAIS SACRIFICADAS

O Gungo é uma região montanhosa, fica a cerca de 400 km a sul de Luanda, a capital de Angola. Por ali, como diz o Padre Joaquim Domingos Luís, as mulheres são quem mais trabalha, quem mais se sacrifica, e a missão da Igreja Católica tem procurado ajudar, nomeadamente através de uma cantina, que foi, entretanto, criada para que os camponeses possam vender os seus produtos sem serem explorados.

“Habitualmente, quem trabalha nos campos são as mulheres. Os homens pouco ajudam e são sempre elas as mais sacrificadas. A missão procura ajudar no que pode, sobretudo no escoamento dos produtos para serem vendidos a melhor preço na cidade, pois os comerciantes vêm às aldeias e exploram os camponeses, comprando os seus produtos a baixo preço, por estes não terem meios de transporte para os escoar para a cidade. Ao mesmo tempo, a missão possui uma cantina que vende bens de primeira necessidade a um preço acessível para ajudar os camponeses a não serem explorados por comerciantes sem escrúpulos”, descreve o missionário.

“QUEM GOVERNA ESTÁ LONGE…”

Na mensagem enviada para a Fundação AIS, o Padre Joaquim Domingos Luís fala de uma região remota, onde vive um povo esquecido, que os políticos só visitam em época de eleições. E dá o exemplo do que pode ser feito para minimizar o sofrimento de quem vive do trabalho dos campos e mal consegue alimentar os seus filhos.

“Como são zonas remotas, os políticos só chegam lá por ocasião das eleições e às vezes nem isso. É um povo esquecido e que vive com muitas dificuldades”, diz, acrescentando:

A nível de segurança alimentar, Angola poderia produzir o suficiente para alimentar a sua população e vender para outros países. A organização de pequenas cooperativas, o apoio às mulheres para a agricultura e comércio, a formação agrícola poderia ajudar a evitar situações de escassez alimentar e de especulação nos preços. O problema é que quem governa está longe, na cidade, e ignora o sofrimento dos que vivem isolados”.

Padre Joaquim Domingos Luís

PAÍS RICO, POVO POBRE…

Desde Portugal, o Padre Joaquim Domingos Luís mantém-se em contacto constante com as equipa que estão em Angola e, como homem de fé, espera sempre que as coisas melhorem e que se ultrapasse o que chama de “escândalo da fome”, até por se estar a falar de Angola, que é um país rico em recursos naturais, nomeadamente petróleo e diamantes, mas onde vive uma população muito empobrecida.

Estudos apontam para que cerca de 17 milhões de angolanos possam viver actualmente em situação de pobreza neste país africano de língua oficial portuguesa, o que representa 49,8% da população. Uma percentagem que tem vindo a crescer de ano para ano e que faz aumentar a incompreensão de quem olha para o potencial do país e vê a miséria de quem vive por lá.

“Esperemos que a situação melhore rapidamente para que este escândalo da fome, num país tão rico como Angola, acabe o mais rapidamente possível com a ajuda de políticas de apoio aos camponeses e pequenos comerciantes”, conclui o Padre Joaquim Domingos Luís, na mensagem enviada para a Fundação AIS em Lisboa.

BISPOS DENUNCIAM “ANGÚSTIA” DAS POPULAÇÕES

Os alertas do missionário português acabaram por ser sublinhados numa reflexão pastoral publicada no passado dia 17 de Julho pela Conferência Episcopal de Angola e São Tomé. No documento, enviado para a Fundação AIS, os bispos angolanos traçam também um retrato preocupante da crise social no país e falam na “visível angústia” das populações que não conseguem “suportar a carestia de vida, nos últimos tempos agravada com o aumento generalizado dos preços”.

Este aumento funcionou como o “principal gatilho”, dizem os prelados, para a “degradação social dos tecidos mais frágeis da sociedade que antes viviam com parcos meios, vendo-se agora na condição de indigência”, dando “poucas alternativas de vida com dignidade a que se tem direito como pessoas”. Os Bispos alertam ainda para o facto de esta realidade poder resultar na “inevitável indignação popular” que “pode ameaçar a paz social”, e criticam mesmo o “uso desproporcional da força policial, quando está em causa o legítimo direito de indignação popular”.

A confirmar as previsões de indignação popular e de convulsão social, a greve dos taxistas decretada em resposta ao recente aumento do preço dos combustíveis, degenerou em actos de vandalismo, saques de lojas e bancos em Luanda que tiveram como resposta a colocação de um forte dispositivo militar nas ruas. Só na segunda-feira, dia 28, morreram quatro pessoas e mais de 500 foram detidas.

OUTRAS DENUNCIAS DE FOME

As palavras dos Bispos de Angola e também do Padre Joaquim Domingos Luís, vêm na linha também da denúncia, em Novembro do ano passado, da Irmã Maria do Céu Costa, franciscana missionária da Mãe do Divino Pastor. De passagem por Portugal, a religiosa descreveu também à Fundação AIS, uma situação de profunda crise em Angola. Referindo-se especialmente à zona de Luanda, onde está em missão há vários anos, a religiosa referiu que “há muita fome”, e é mesmo comum ver pessoas a vasculhar comida nos contentores do lixo, tal como é normal encontrar crianças fora do sistema de ensino, muito analfabetismo e “muitos suicídios”.

*Notícia da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre