Charlie Chaplin e Maria

Saiu esta semana uma nota doutrinal sobre alguns títulos Marianos referidos à cooperação de Maria na obra da Salvação intitulada “Mater Populi fidelis”, podem ler aqui, se o vosso latim estiver enferrujado, e ainda não tiverem ido ler, significa “Mãe do Povo Fiel”[1].
No início da semana tinha visto um influencer católico, da internet, falar disso. E dizia ele, que a Igreja, estaria à beira de decretar um novo dogma Mariano.

Achei estranho, não imaginava que uma coisa dessas acontecesse assim de surpresa. Que ninguém me tivesse perguntado nada, já não me surpreendia, mas um novo dogma? E nem esperaram pelo Natal?
O amigo Diego Britto de Miranda, lá do outro lado do Atlântico, mandou-me o vídeo, que ele é meio beato e aposto que já estava a pensar em fazer mais um terço, pelo que a mensagem seria mais para me avisar que me ia pedir para abençoar alguma coisa.

Conversámos um pouco e a conversa despertou em mim memórias há muito esquecidas, provavelmente da Mariologia com o padre Ferrão ou da liturgia com o padre Cabecinhas.

Já nessa altura se falava deste assunto.
O texto afinal é ainda mais abrangente, a malta da internet estava com esperança que fosse decretar Maria como co-redentora. As luzes vermelhas acenderam-se logo na minha cabeça, porque  é terreno pantanoso e sensível.
As opiniões polarizam-se muito nisto do amor à Nossa Senhora. Uns roçam a idolatria, outros a heresia, outros passam por estúpidos que não gostam dela. Há que dizer que estúpido é quem rejeita o Amor de Mãe elevado à perfeição.

Depois a questão torna-se complicada logo no título. Se dissermos que fulano é “co-autor” de alguém, todos entendemos que o fulano é “autor-com-beltrano[2]”. Ora, como pode a Nossa Senhora ser redentora com O Filho?
Daqui a uns dias estamos a celebrar a Imaculada Conceição e lá se diz, na explicação do dogma,  que ela foi a primeira a ser redimida, pelas graças futuras do Seu Filho.

Veja-se aqui:

“Também a plenitude de graça de Maria existe porque ela a recebeu gratuitamente, antes de qualquer ação sua, «em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano [105][3]»”.

Foi com alguma expectativa que li o texto e com grande entusiasmo o terminei. Sobretudo porque explica bem e ajuda-nos a situarmo-nos diante de Maria, do amor que lhe devotamos, da piedade popular e naturalmente, de Deus.

E assim bem explicadinho, não se rouba nada a ela, pelo contrário: revela-se a verdadeira grandiosidade da sua vida e da sua acção.
Assusta-me sempre uma devoção bem-intencionada, mas que acaba por ficar presa em si, em vez de lançar mais Alto e o texto fala disso claramente:

“Quando nos esforçamos em atribuir-lhe funções ativas, paralelas às de Cristo, distanciamo-nos da beleza incomensurável que é especificamente sua. A expressão “mediação participada” pode expressar um sentido preciso e precioso do lugar de Maria, porém, se inadequadamente compreendida, poderia facilmente obscurecê-lo e até contradizê-lo.[4]

Temi que o texto fosse apenas lançar mais confusão, dando lenha para atiçar as diferenças e é justamente isso que não faz, excepto quando não se quer ver!

Recordei a história do Charlie Chaplin que um dia participou num concurso de sósias dele mesmo, reza a estória que ficou em terceiro lugar.
A ideia que fazemos das pessoas é, muitas vezes, bem diferente da realidade. Fazemo-lo com os que nos são próximos, quanto mais com os que só vemos ao longe, imagem no que fazemos com quem está no Céu há dois mil anos.
Façam o exercício, mas guardem para vocês, de pensar na cor dos olhos de quem vos é próximo. Se tivessem de ditar um retrato robot à polícia judiciária, quão complicado seria?

Com a Nossa Senhora eu sinto que fazemos o mesmo, bem-intencionados, fazemos uma ideia dela tão bonita, tão elevada, tão, tão, tão, que corremos o risco de não ser ela, mas apenas uma imagem dela, que existe apenas em nós. E quando isso acontece, perdemos a noção e talvez a oportunidade de a encontrar, de a escutar e de crescer com ela.
Fazemos isso com Deus! A esmagadora maioria dos ateus, não acredita num deus que só existe na cabeça deles!

Volto ao número 33: corremos o risco de

distanciamo-nos da beleza incomensurável que é especificamente sua”.

O meu coração alegrou-se ao ver verbalizado algo que eu não sabia explicar bem, e que me tem feito ser alvo do ódio de estimação de algumas pessoas. Mas o risco é este: não ver a beleza real de Maria tão ocupados à procura da beleza que achamos que ela tem que ter.
Nem o Charlie Chaplin era suficientemente parecido com a imagem que o júri tinha dele!!

O texto é claro: ela é poderosa intercessora, e vai mais longe dizendo que santo algum se assemelha a ela nessa intercessão. Intercessora, Mãe, “continua a dizer, no Céu, ao Filho: Não têm vinho![5]

É das coisas mais bonitas que ouvi a seu respeito.
Que mais quer uma Mãe que não ver realizar-se a missão do Filho?
É elevada sim, mas não ao nível do Filho, não tão elevada que abandone a esfera da humidade.

“Tudo o que foi dito anteriormente não ofende ou humilha Maria, porque todo o seu ser reporta ao seu Senhor. «A minha alma glorifica o Senhor» (Lc 1, 46). Para ela não existe outra glória que a de Deus. Sendo Mãe, duplica a sua alegria vendo como Cristo manifesta a beleza inesgotável e superabundante de sua glória curando, transformando e enchendo de si o coração desses filhos, que ela acompanhou no seu caminho até ao Senhor. Portanto, um olhar dirigido a ela que nos distraia de Cristo, ou a coloque no mesmo nível do Filho de Deus, ficaria fora da dinâmica própria de uma fé autenticamente mariana[6]

 

A intercessão junta, à nossa oração, a oração dos Santos, que a acompanham diante de Deus.
Lembram-se da estória de Pedro que se queixou a Jesus que Maria estava a deixar entrar povo no Céu pela escada do rosário? E Jesus responde só: “são coisas da minha Mãe”.

Jesus era Filho único, as mães têm todas uma influência extraordinária sobre os filhos únicos – somos uns trouxas ao pé delas!

Não tenciono resumir o texto, nem substituir leitura e a meditação do mesmo, mas queria deixar este pensamento que me persegue e se verbalizou nesta leitura.

Não era lamentavelmente triste, que de tanto confiar na intercessão de Maria, dos Santos, nos dispensássemos de ir ao Pai? Bastando-nos “mandar o recado”, passo a expressão. Tem valor, sim! Tem IVA: valor acrescentado, acrescenta à nossa oração.
A nossa devoção aos santos, acrescenta à nossa Adoração ao Pai, não pode nunca substituir.
Não é um risco assustador do qual precisamos fugir?

Pe. Patrício Oliveira

*a imagem é a actriz Vanessa Benavente no papel de Maria, na série the Chosen


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[1] No latim quando uma palavra, como “populi”, termina em “i”, costuma significar que se traduz por “do...” no caso “do povo”. Deviam ter tido aulas de latim comigo, que era para não ter tido aulas só com um colega, que a determinada altura, perto no Natal, decidiu ir passar uns dias no CHUCH, o que resultou numa aula absolutamente constrangedora, em que tive que cantar músicas de natal em latim! Latim, meu povo! Já nem me lembro de como se chamava a professora, apenas que nos referíamos a ela como “Tininha”. Adorável senhora, era responsável nacional pelo ensino do latim. Professora exemplar, fora o trauma dos cânticos de Natal, só recordo coisas boas.

[2] O padre Doutor Branco, meu ilustre professor de filosofia, é que nos ensinou a meter tracinhos nas palavras, para ajudar a ler o sentido;

[3] Mater Populi fidelis, 47
[4] Mater Populi fidelis, 33
[5] Mater Populi fidelis, 41
[6] Mater Populi fidelis, 66